Sexta-feira, 21 de novembro de 2008, a Receita Federal do Brasil (RFB) havia desembaraçado o eixo para embarcação do tipo PSV que tinha parametrizado no canal vermelho, a mercadoria era muito aguardada, por isso nos esforçamos para tirar do armazém no porto de Itajaí, unitizar no container e transportar para o estaleiro no mesmo dia.
Tivemos sucesso na importação, foi um dia com gostinho de dever cumprido, mal podia esperar para chegar em casa e relaxar jogando Nintendo Wii. O retorno para casa seria como nos últimos 2 meses, andando devagar na BR 101 entre Navegantes e Balneário Camboriú embaixo de chuva, ora garoando, ora mais forte, mas nunca parava.
Ninguém aguentava mais ouvir aquele maldito barulho de chuva.
Além de irritante, havia também preocupação. O estaleiro em que eu trabalhava na época está instalado à margem do Rio Itajaí-Açu, a equipe permanecia vigilante com a situação e não dava bobeira deixando ferramentas e maquinário sem guardar apropriadamente, o medo da enchente estava presente:
– Espero que não seja como em 1983
– diziam os mais antigos da empresa, pois o contexto de chuva interminável também havia acontecido na década de 80, antecedendo o “toró” que fez tudo transbordar.
O final de semana chuvoso.
No carro voltando para casa, ouvia música alta para abafar o insistente som da água caindo, ouvindo provavelmente Rise Against, Nelly Furtado ou Gabriel O Pensador. Chegando em casa, cumprimentei meus pais, brinquei com meu já falecido cão Bill e fui para meu quarto.
A vontade de jogar videogame era grande, mas meu sono muito maior, estava no último semestre do curso de Comércio Exterior, ajeitando os últimos detalhes da monografia e com apresentação marcada para quinta-feira, acordando todo dia 05:40 para ir trabalhar e, em dias de aula, ia dormir por volta da meia noite.
– Amanhã eu jogo – Pensei com os olhos já implorando descanso, fechei a porta e a janela do quarto, puxei o blackout, usei o travesseiro para abafar o barulho da chuva e tirei um cochilo de 14 horas.
Na manhã seguinte, o barulho da chuva estava assustadoramente superior, como um temporal de verão que espanta os turistas de Balneário Camboriú no final do dia, só que mais forte e não cessava em momento algum, fiz a besteira de abrir a janela para conferir e a água entrou pelos meus olhos e narinas devido ao vento que acompanhava.
A enchente em minha rua foi tamanha, que a pressão da água na rua fez ela subir algumas vezes pelos ralos do apartamento (morávamos no primeiro andar), passamos o final de semana ilhados, maior parte do tempo sem luz (não dava para ligar eletrônicos pois era grande o risco de queimar) e enxugando o chão dos ralos que imitavam mini Géisers de leptospirose.
Segunda, dia 24 de Novembro de 2008.
Levantei na segunda e predominava um silêncio que, após tanto tempo de chuva, me soou esquisito, olhei pela janela e não havia um pingo caindo, nem parecia que havia acontecido um juízo final pluvial. Soube pela rádio que a BR-101 estava alagada, então precisaria ir trabalhar me deslocando por dentro até Itajaí e pegar o Ferry-Boat para chegar em Navegantes.
Mesmo não havendo movimento saindo as 6:30 para trabalhar, havia um silêncio nas ruas que nunca tinha testemunhado, lembro que não quis tocar música no carro como se quisesse respeitar a situação, apenas andava e contemplava quietamente a quantidade de destroços e alagamentos que precisei desviar em Balneário Camboriú.
Mas foi ao chegar em Itajaí que entendi o quão alienado o final de semana sem luz e ilhado tinha me tornado.

O silêncio pós tragédia junto daquele cenário de filme apocalíptico me causou medo e sensação impotência, com muita dificuldade e pegando algumas ruas na contramão foi que consegui chegar perto do Rio Itajaí-Açu para levar outro susto, a correnteza estava fortíssima e levando muitos destroços na direção do mar, e o nível rio estava tão alto que invadia a avenida e me impossibilitava de pegar o Ferry-Boat, que obviamente não estava operando. Liguei para meu chefe que morava em Navegantes para contar da situação:
– Não tem como você chegar, vá pra casa. – Disse ele obviamente desanimado, até tentei chegar na residência de alguns conhecidos em Itajaí para saber como poderia ajudar, mas não havia condições nem mesmo para veículos altos.
Quarta, dia 26 de novembro de 2008.
Nesse meio tempo, meu curso informou que a apresentação da monografia fora adiada em duas semanas, pois a Univali estava abrigando os desalojados, e foi somente nesse dia que consegui chegar no estaleiro (ainda vazio pois quase todos funcionários haviam perdido as casas e/ou diversos bens materiais). Não havia muito o que fazer, tratamos de segurar alguns embarques e fomos descobrir onde os navios tinham descarregado nossos contêineres desde sábado, pois o rio ainda não dava condições para atracar navios nos portos em Itajaí e Navegantes.
Quem dera esse tivesse sido o único problema do Porto de Itajaí.
3 dos 4 berços de atracação ficaram comprometidos, sendo que os berços 1 e 2 ruíram, o porto voltou a funcionar em regime emergencial em dezembro e apenas em outubro de 2011 que os dois berços mais comprometidos voltaram a receber embarcações, as fotos são conhecidas, mas acho mais interessante ver o impacto das exportações e importações no município.

Lembra do eixo de embarcação que estava num dos armazéns do porto de Itajaí? Ele estava armazenado no armazém que perdeu o piso e diversos produtos que estavam nele caíram no rio. Se não tivéssemos conseguido carregar na sexta, provável que também teríamos perdido ele.

Colocando as importações em ordem.
Por falta de opção, alguns contêineres haviam sido descarregados no Porto de Imbituba e como os porto secos alfandegados da região estavam com a capacidade lotada, não tínhamos como transferir para perto de nós, razão pela qual tivemos que iniciar o despacho aduaneiro num porto desconhecido.
Óbvio que um dos processos parametrizou no canal vermelho.
A vistoria física foi marcada para as 9 da manhã, eram equipamentos complexos que não adiantaria deixar para o Despachante Aduaneiro que atuava na região, os fiscais da RFB sempre perguntam mais detalhes.
Sobrou para mim e meu colega do setor ir para o sul de Santa Catarina, acordei 20 pras 5 para chegar às 6 no estaleiro, pegar o carro da empresa e partir para Imbituba.
Nunca havíamos ido para lá, mas era notável que o porto estava com a capacidade de contêineres no máximo, mas exótico mesmo para nós foi a vistoria – ao chegarmos, notamos que a mercadoria ainda estava no container, perguntei para nosso despachante aduaneiro da cidade:
– Por que não desunitizaram o contêiner?
– Não precisa, aqui eles vistoriam apenas abrindo a porta.
– Hein!?
– Isso, o fiscal vai entrar no container com vocês.
– Mas e se ele pedir pra ver algo que está impossível de mostrarmos?
– Nem esquenta.
– …
Chegou o fiscal, nos deu bom dia e pediu para ver um único item da Declaração de Importação (D.I), eu e meu colega entramos* no container junto de um funcionário do porto para localizar.
*Entenda “ENTRAR” como: escalar e esgueirar em diversas caixas de tamanhos variados e perigosamente empilhadas.
Depois de encontrar, chamamos o fiscal que também entrou, explicamos sob luz de lanternas do que se tratava, aceitou sem fazer perguntas e havíamos terminado em menos de 5 minutos… se soubéssemos que ia ser tão fácil, não teríamos ido em 2.

Muitos outros problemas menores e prejuízos ocorreram nas importações seguintes, mas com o passar das semanas e conforme todos exerciam o melhor de suas resiliências, as empresas de logística da região foram se organizando para suprir as dificuldades do Porto de Itajaí, gradualmente as demais importações foram sendo desembaraçadas em outros portos e zonas secundárias alfandegadas mais próximas de nós.
***
O máximo que essa tragédia me afetou foi profissionalmente e evidente que não é nada comparado a todos os que perderam suas casas, bens e entes queridos.
Meu objetivo foi mostrar para quem não é da região como isso afetou o comércio exterior de Santa Catarina, também como precisamos nos adaptar perante desastres naturais ou outras dificuldades em escala, crescemos com a experiência, mas o trauma ainda fica mesmo depois de 10 anos.
Eu que mal fui afetado, tenho medo quando entramos no segundo semestre e começa a época de chuvas mais fortes e contínuas, pois tendo acontecido em 1983, 2008 e 2011, sabemos que vai acontecer novamente.
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Quem é o Jonas?
É um cara formado em comércio exterior, que trabalha há mais de dez anos com importação, compras e logística internacional, e continua apaixonado pela falta de rotina que essa vida tem! Agora ele quer dividir essa experiência com todos, de forma simples e bem humorada.
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